Saúde: a nossa primeira etapa de normalização

21 abr 2020

José Fragata
Cirurgião Cardiotorácico
Vice-Reitor da Universidade NOVA de Lisboa
Professor Catedrático da NOVA Medical School | Faculdade de Ciências Médicas

Desde 2 de março que o Sistema de Saúde em Portugal se tem virado, de forma exemplar, para dar resposta à pandemia. E isso é fruto de um esforço coletivo, muito centrado nos profissionais, mas também da boa liderança de topo. Resultado: o aplanamento da curva epidemiológica, que, prolongando a prevalência viral no tempo, logra, contudo, reduzir o impacto sobre os serviços de saúde. Se continuarmos com as medidas fundamentais que previnem a propagação e se tivermos a necessária resiliência, talvez nos poupemos a cenários vistos noutros países, em que os sistemas de saúde simplesmente não toleraram a demanda de pico, muito centrada nos cuidados intensivos.

A pressão para retomar a “vida normal”, seja por razões económicas, seja por motivações de ordem social, vê agora uma abertura, depois de termos experimentado a reclusão social. Mas o que se passou, entretanto, com o resto da vida? O que aconteceu, por exemplo, aos doentes crónicos ou aos idosos que sofrem de doenças degenerativas? É difícil saber com exatidão. As estatísticas têm um passo bem mais lento do que o desenrolar da realidade, mas sabemos que os serviços de urgência, habitualmente muito frequentados, tiveram uma quebra de mais de 50%, que os exames de imagiologia caíram mais de 95%, que as cirurgias programadas foram maioritariamente canceladas e que grande parte das consultas passaram a ser realizadas remotamente. Desconhecemos o que aconteceu exatamente a esses doentes, mas não há dúvidas de que a lista de espera é um fator reconhecido de agravamento do seu risco e que compromete a sobrevida. Refiro-me, muito em particular, aos doentes oncológicos, aos candidatos a um transplante e aos doentes cardiovasculares, todos eles normalmente tratados no departamento hospitalar que dirijo e cuja realidade conheço bem. Estes doentes não estão infetados pelo coronavírus, têm direito a ser tratados e não podem ver a sua oportunidade adiada. Por isso, deverá ser para eles a prioridade na retoma à vida normal. E como?

É sabido que, quando a crise se declarou, o nosso SNS não se achava no seu melhor momento, com falta de recursos humanos e défices crónicos de financiamento, originando dificuldades no acesso. A pronta resposta que demos à crise – tão tipicamente portuguesa, face a uma qualquer necessidade – não deve iludir-nos sobre essas mesmas falhas, agora agravadas pela procura de cuidados à pandemia. O que treinámos, neste intenso mês e meio, foi a resiliência em crise, mas não melhorámos os meios e a estrutura que já possuíamos e que teremos agora de reativar, a partir do ponto em que estava.

Também é sabido que os doentes, sobretudo os mais vulneráveis, têm, hoje, medo de ir aos hospitais, medo de se poderem aí infetar. É fundamental fazer ganhar neles a confiança, demonstrando que os hospitais são seguros, uma vez tomadas as devidas medidas de proteção, e que será bem mais perigoso se aí não receberem o tratamento de que necessitam. Cabe às instituições de saúde, aos profissionais e aos órgãos de comunicação social ajudarem nesta mensagem de tranquilidade e confiança. Só assim pode haver cuidados de saúde. 

O modelo que separa os hospitais que tratam intensamente doentes com COVID-19 dos outros, que permanecem, tanto quanto possível, livres desses doentes, parece ser o que melhor serve o desiderato de responder aos doentes crónicos. Para tal, será necessário neles concentrar agora os meios humanos e financeiros de que precisam para essa resposta acelerada.

A retoma dos cuidados de saúde aos doentes não infetados pelo coronavírus poderá ser, de todas, a mais fácil e rápida de conseguir: testando sistematicamente todos os doentes a ser admitidos, expandindo as consultas por telemedicina, assegurando-nos de que os profissionais se mantêm saudáveis, sendo intransigentes no uso  de meios de proteção individual e seguindo todas as normas de distanciamento social e de higienização.

Portugal foi exemplar no sprint do ataque à pandemia, mas ganharemos a maratona ao ter capacidade de retomar, a partir de agora, a nossa anterior “vida normal”. Faseadamente, sim, e com toda a segurança. Por isso, temos de nos focar na mais prioritária das etapas de normalização: a saúde de todos os outros Portugueses. Aliás, se há coisa que aprendemos com esta pandemia é que não há economia sem saúde.

*Artigo publicado na Sábado