Ousemos pensar a Ética

16 mai 2020

José Fragata
Cirurgião cardiotorácico
Vice-Reitor da Universidade NOVA de Lisboa

A crise pandémica causou disrupções profundas na sociedade. Sacrificou já extensamente a saúde pública, mudou estilos de vida e afeta as economias locais e globais. Mas também comprometeu direitos e garantias individuais, mesmo aqueles que pensávamos intocáveis, como a liberdade de nos movermos, a autonomia de determinarmos o nosso dia-a-dia ou o direito ao trabalho e à segurança.

Mas esta pandemia, tal como outras no passado, também tocou sentimentos humanos profundos, como a fé e o medo, enquanto veio confrontar-nos com dilemas de moralidade difíceis de dirimir. Falo do confronto entre o interesse individual e o bem comum. Um conflito latente que tem evoluído por fases, tal como a COVID-19, e que, agora, se torna inevitável.

Quando a pandemia se declarou, a primeira e mais legítima das prioridades foi a defesa da saúde individual e o limitar da propagação da doença, através da adoção de medidas que procuraram, e lograram, poupar vidas, limitando o impacto epidemiológico. Medidas totalmente justificadas por não haver valor maior do que o da vida humana, sendo cada vida pessoal insubstituível e central ao universo bioético. Nalguns casos, como em Espanha e em Itália, o afluxo esmagador de doentes fez colapsar a capacidade instalada de cuidados intensivos e tornaria, em dias ou horas, impossível tratar todos. Foi preciso fazer escolhas, as mais penosas, sobre quem tratar – por ter maior probabilidade de sobreviver – e sobre quem não tratar e, assim, deixar morrer. Estas escolhas foram moralmente difíceis, mas não terão sido moralmente erradas. Foram necessárias com base na dimensão da Ética do Utilitarismo.

Introduzida no século XVIII por Jeremy Bentham, para responder à necessidade de tratar com base na igualdade da condição humana e não num qualquer status aristocrático individual ou moral e que se generalizaria na defesa do “bem para a maioria”. Foi exatamente com base na defesa do “bem da maioria” que, administrando bens escassos, os meus colegas tiveram de decidir, como em qualquer cenário de guerra, quem tratar e quem não tratar. Ao longo de muitos anos, tenho feito escolhas difíceis sobre doentes, tipicamente quando, em presença de um órgão oferecido para transplante, há que selecionar um dador entre vários, condenando potencialmente outros. São escolhas de um enorme melindre e desassossego para a consciência moral, mas necessárias, e só possíveis, quando assentes numa clara lógica de razoabilidade, envolvidas na mais profunda humanidade e compaixão.

Nesta segunda fase, a da iminente reabertura, voltam a levantar-se dimensões éticas que muito poucos ousam abordar, por serem incómodas, por parecerem cinzentas na cor e por as sentirmos amargas no travo: o conflito real entre a necessidade imperiosa de retomar as várias dimensões da vida social e económica e o risco acrescido de mortalidade, que, podendo atingir todos, atingirá ironicamente os mais vulneráveis, os idosos, os doentes e os socialmente desprotegidos.

Sabemos que não é mais possível perpetuar o encerramento da sociedade, sob risco de infligirmos danos irreparáveis no tecido social e económico do país, o que seria um modelo figurado, mas cruelmente real, de morte coletiva.

Durante a crise económica mais recente, as taxas de suicídios, de neoplasias não tratadas ou de transplantes não realizados escalaram em linha com as falências pessoais e corporativas. E essas também foram mortes.

Poderemos reabrir a sociedade, mesmo sabendo que, para tal, iremos comprometer alguma segurança, traduzida, provavelmente, em mais infeções e mortes? Esta é a pergunta que encontra resposta na ética do utilitarismo, em nome da qual sacrificaremos alguns, esperemos que não muitos, para salvar a maioria. A ética do utilitarismo não é necessariamente má, mas tem de ser bem justificada e ainda melhor acautelada, pela ausência inexorável de uma alternativa e pelo minimizar imperioso de riscos desnecessários, mantendo-se escrupulosamente as medidas de precaução.

É certo que teremos de continuar a abdicar, individualmente e por enquanto, de alguma da nossa tão querida autonomia, mantendo uma guarda rigorosa. Mas essa é, afinal, uma responsabilidade de todos: sacrificarmo-nos individualmente, mantendo a guarda e reduzindo os riscos, para permitir uma outra sobrevivência, não menos importante, a do país social e económico. Ou seja, a sobrevivência de todos nós.

*Artigo publicado no Expresso