2 jul 2020
José João Abrantes
Professor Catedrático da NOVA School of Law
Pró-Reitor da Universidade NOVA de Lisboa
Há que rejeitar as teses que apregoam que a resposta à crise sanitária tem de ser mais pobreza e menos direitos. A resposta tem, sim, de passar pelo reforço do Serviço Nacional de Saúde e por uma segurança social pública robusta e eficaz. Ou seja, um Estado Social forte que proteja todos, sobretudo os mais carenciados, para que ninguém fique para trás, porque não há liberdade a sério com fome, desemprego e doença
Uma das marcas das últimas décadas tem sido a acentuação das desigualdades sociais, agora à mostra de todos face à crise pandémica, a qual fez acelerar a quebra de rendimentos e o desemprego, sendo as suas maiores vítimas os trabalhadores e as micro e pequenas empresas. Muitos trabalhadores, sobretudo aqueles que têm vínculos precários, foram despedidos e muitos perderam uma parte substancial dos seus rendimentos.
A legislação não estava, evidentemente, preparada para uma crise destas. Mas uma coisa é preciso assegurar: que as medidas de contenção e prevenção da covid-19 sejam acompanhadas de medidas que reforcem a fiscalização do cumprimento das leis laborais, garantindo a manutenção dos postos de trabalho e os rendimentos dos trabalhadores. Nomeadamente, é necessário que os objetivos que presidiram à criação do lay-off simplificado, agora prorrogado, com algumas alterações, não sejam frustrados, não devendo a figura poder ser utilizada para salvaguardar os lucros dos acionistas à custa dos salários dos trabalhadores e da segurança social. Perante trabalhadores e famílias a atravessar momentos de extrema dificuldade, o Estado deve tentar, tanto quanto possível, defender os seus direitos, não permitindo despedimentos ilegais e apoiando com dinheiros públicos apenas as empresas que se comprometam, pelo menos durante algum tempo, a não despedir.
Além do mais, como demonstrou um estudo da Escola Nacional de Saúde Pública, há uma relação clara entre pobreza e risco de contágio pela covid-19. São precisamente os mais vulneráveis – os trabalhadores com vínculo precário e com baixos salários, os que se deslocam em transportes públicos e os que residem em casas sem condições de habitabilidade – que mais sofrem e se expõem a maiores riscos.
Algo, porém, tornou-se evidente: a calamidade teria sido muito pior na ausência de um serviço público de saúde decente e de uma segurança social capaz de responder aos casos mais extremos de necessidade. Viu-se que o tão apregoado “menos Estado, melhor Estado” tem custos terríveis. Mesmo diminuído na sua capacidade de resposta às emergências, fruto de sucessivas políticas de austeridade e cortes na saúde e nas políticas sociais, foi o Estado que nos valeu. A conclusão a tirar só pode, pois, ser a de que as mudanças a fazer terão de assentar numa nova centralidade desse Estado de bem-estar, com o investimento na saúde e nos serviços públicos.
A pandemia expôs, na verdade, uma desigualdade que uma sociedade decente não pode aceitar. O que temos de decidir é se queremos deixar as pessoas à sua sorte ou tentar, no que nos compete, minimizar-lhes os riscos, num mundo em que há quem viva abaixo do limiar de pobreza.
Há que rejeitar as teses que apregoam que a resposta à crise sanitária tem de ser mais pobreza e menos direitos. A resposta tem, sim, de passar pelo reforço do Serviço Nacional de Saúde e por uma segurança social pública robusta e eficaz. Ou seja, um Estado Social forte que proteja todos, sobretudo os mais carenciados, para que ninguém fique para trás, porque não há liberdade a sério com fome, desemprego e doença. Só assim se poderá responder aos grandes desafios deste nosso tempo de incertezas e angústias.
Até porque a História mostra-nos que a democracia e a liberdade não são valores adquiridos, sendo certo que têm sido a austeridade, a deterioração dos serviços públicos, o desemprego e a pobreza as principais causas da ascensão da extrema-direita em vários países europeus, com a capitalização por forças populistas do grande descontentamento popular gerado pelas políticas neoliberais.
*Artigo publicado no Expresso