1 abr 2020
José Fragata
Cirurgião Cardiotorácico
Vice-Reitor da Universidade NOVA de Lisboa
Professor Catedrático da NOVA Medical School | Faculdade de Ciências Médicas
O mundo debate-se, hoje, com uma luta sem precedentes. A pandemia COVID-19 já infetou 750.000 pessoas e ceifou a vida a cerca de 35.000.
As gerações atuais não têm memória de pandemias com impacto relevante, mas elas sempre existiram. Cólera, Febre Amarela, Influenza, Gripe Espanhola, VIH-SIDA, SARS, Ébola e, agora, COVID 19 custaram milhões de vidas.
As pandemias têm sido, mais recentemente, facilitadas pelas interações entre humanos e animais, pela vida comunitária em grandes agregados, pelas viagens e rotas facilitadas e por toda uma interferência prejudicial entre consumo e ecossistemas.
Estamos ainda no início desta nova pandemia, que muitos, por analogia com outras de tipo viral semelhante, esperam poder vir a terminar no hemisfério norte até ao verão, apesar da sua maior contagiosidade. No entanto, é possível tirar, desde já, algumas ilações.
Refiro-me às perversidades da globalização, aos mitos da invencibilidade, à inadequada priorização dos interesses e às lições para os sistemas de saúde. Mas também às lições, tão edificantes, da melhor consciência social dos portugueses, perante a adversidade.
A globalização é um processo de integração económica, social, cultural e política, impulsionado no final do século XX e que trouxe inegáveis vantagens. Porém, no dizer do Nobel Joseph Stiglitz, teve muitos discontents, e estes não terão sido só os económicos. Assim, persistem grandes assimetrias nos costumes, nos valores e direitos da cidadania, o mesmo para a transparência e para a liberdade de informação. Se a globalização induz o aparecimento e facilita a propagação das pandemias, as assimetrias referidas não tornam fácil o seu conhecimento atempado. O caso presente é disso exemplo lamentável.
Por outro lado, o mundo ocidental, abastado nos meios e supérfluo na tecnologia, tem-se mantido, confortavelmente, afastado de guerras, poupado à devastação dos grandes desastres ambientais a que vimos assistindo, à distância de um ecrã de televisão, comovidos pela emoção sincera, mas passageira. Esta pandemia era mais um desastre infecioso, no oriente distante, apoiado com a solidariedade fácil de quem se solidariza, estando longe. Contudo, a globalização tornou-o próximo e o ocidente, agora já o mundo todo, partilha da sua devastação, que pensávamos não beliscar, mais do que ao de leve, a nossa pretensa invencibilidade. Afinal, estamos vulneráveis. Muito mesmo.
Depois, assistimos à hesitação dos decisores que, perante informações imprecisas e desfocadas que chegavam do oriente, confrontados com pareceres técnicos brandos e assustados pela conflitualidade dos interesses políticos e económicos em jogo, manifestaram, no início, uma atordoada capacidade de decidir as necessárias medidas para combater a pandemia que se avizinhava. Portugal terá sido uma razoável exceção, mas pesou, para muitos, a política, o receio do impacto económico e a negação de que o pior viesse, como veio, a acontecer. Não devia haver prioridade maior do que a da Saúde. E não há, certamente, bem maior a priorizar do que a Vida. Esta é a lição que deveria ficar-nos.
Esta pandemia também nos deixa algumas reflexõessobre cuidados de saúde. Mostrou-nos que temos de ter um serviço de saúde geral, assente numa sólida saúde pública, certamente com meios (apesar de ser totalmente impossível acautelar os meios suficientes face a tanta demanda de pico), mas sobretudo com uma organização recrutável, flexível e resiliente. Para quem levou tanto tempo a esgrimir entre público e privado, aqui está a resposta servida pela pandemia: público, privado e social, precisamos de tudo e devemos incluir todos. Necessitamos de todos os meios de que dispomos e de tantos mais que possamos recrutar. Necessitamos de um sistema de saúde com plena integração de serviços e uma enorme resiliência, em caso de catástrofe, pois, destas, haverá futuras. O peso da necessidade dilui posições de mera ideologia.
A crise pandémica trouxe também à luz a afirmação de uma Sociedade Portuguesa plena e solidária. São manifestações por parte do Governo, que tem estado bem, da Indústria, dos Serviços, das Associações e, muito em particular, dos Cidadãos. Todos praticantes de uma cidadania responsável, solidária e exemplar, na resposta coletiva à adversidade da pandemia. Manifestação que, não nos tirando das preocupações, nos reassegura da capacidade de TODOS juntos vencermos esta crise e aprendermos dela as lições que forem possíveis.