Inteligência Urbana no Combate ao COVID-19: utopia ou distopia?

6 abr 2020

Miguel de Castro Neto
Subdiretor NOVA Information Management School
Coordenador do NOVA Cidade – Urban Analytics Lab

O terrível combate ao COVID-19 que travamos hoje tem destacado os autarcas entre os protagonistas das múltiplas batalhas diárias que, localmente nas câmaras municipais e juntas de freguesia, estão na linha da frente da resposta às necessidades das populações e na implementação de medidas de prevenção que assegurem, tanto quanto possível, a saúde pública.

É precisamente neste contexto que constatamos que aqueles autarcas que adotaram estratégias visando tirar partido da transformação digital para lançar iniciativas de inteligência urbana estão hoje mais bem apetrechados para promover uma mais eficiente utilização de recursos (fator crítico no atual contexto). Mais importante, possuem eventualmente mecanismos de recolha, armazenamento e processamento de dados (num contexto de big data onde temos a oportunidade de tirar partido da Internet of Everything e monitorizar equipamentos, sistemas e pessoas) que lhes permitem conhecer em tempo real e com elevada granularidade espacial as necessidades do território que governam, sendo capazes de proactivamente antecipar necessidades e colocar nos terreno os meios e as respostas com uma elevada precisão espacial e temporal, garantindo assim o cumprimento das quatro máximas que estão incluídas no ODS 11 – Cidades e Comunidades Sustentáveis que, nunca como hoje, fizeram tanto sentido: sustentabilidade, inclusão resiliência e segurança.

No entanto, esta realidade da inteligência urbana coloca também novos desafios, entre os quais ganham relevância no contexto do combate à pandemia a privacidade e a utilização ética dos dados a que podemos ter acesso. Efetivamente, quando somos confrontados com notícias como a de que um infetado com coronavírus foi à padaria e ao supermercado, tendo sido detido à porta de casa ainda com os sacos das compras na mão, temos de nos perguntar se não devíamos colocar ao serviço do interesse público e da segurança sanitária abordagens mais efetivas de monitorização e controlo, como aquelas que sabemos hoje terem sido utilizadas com sucesso nalguns países e cidades asiáticas.

Efetivamente as plataformas de inteligência urbana permitem hoje a monitorização do acesso a infraestruturas e serviços para melhor gerir a cidade no contexto atual, mas entre os exemplos mais sofisticados o destaque vai para a utilização dos telemóveis na monitorização da localização de cidadãos em quarentena (e intervir caso não se mantenham em isolamento), conforme já foi noticiado estar a acontecer na China e na Coreia do Sul, onde os cidadãos em quarentena são seguidos através pelos telemóveis, permitindo monitorizar-se o cumprimento das regras estabelecidas. Indo um pouco mais longe temos a análise do histórico de registos de transações de cartões de crédito, movimentos e imagens de câmaras da via pública de infetados com o vírus para recriar os seus movimentos e identificar interações anteriores (visando identificar necessidades de colocar outras pessoas em quarentena), como foi feito na Coreia do Sul.

No entanto o dilema persiste, será que conseguimos simultaneamente utilizar as atuais capacidades da ciência dos dados e da inteligência artificial e defender a privacidade e a utilização ética desses dados, tendo exclusivamente como propósito o combate ao COVID-19, ou arriscamos estar a abrir a porta para que a sociedade antecipada por Orwell no seu livro 1984 se torne realidade? E sabemos que o Regulamento Geral da Proteção de Dados permite ainda alguma margem de liberdade aos estados nesta matéria, desde que respeitados os seus objetivos, normas e princípios fundamentais, enquanto limites do possível nestes tempos de crise.

Enquanto académico acredito que temos o dever e a obrigação de utilizar a melhor tecnologia disponível e a extraordinária capacidade científica dos nossos cientistas para que, no final do dia, se construa a utopia proposta por Thomas More e não a visão distópica ficcionada por George Orwell.

* Artigo publicado no Dinheiro Vivo